quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A insustentável engenharia do desejo

Se a pornografia vai para além do sexo, o que sobraria do corpo? Caberia perguntar se a produção pornográfica teria em seu processo de expulsão e submissão do corpo em prol de algo criado exclusivamente pela indústria do pornô algum parentesco com a expulsão do conteúdo humano da circulação de mercadorias em geral.

Em certo sentido, a pornografia é a forma mais política de ficção, pois aborda como usamos e exploramos uns aos outros, do modo mais urgente e impiedoso.
J.G. Ballard

Seriam as nossas fantasias mais inconfessáveis a articulação de imagens fornecidas pelo repertório de uma indústria do desejo ou seriam os produtos da indústria do sexo a coleta e divulgação do segredo das camas divulgado à revelia?

De qualquer forma, na pornografia há a sedução da imagem, que não atinge mais somente os meninos urbanos em fase de maturação, mas ambos os sexos e imaginários. As criações mais intensas e tudo aquilo que chocaria o repertório comum dos casais é posto e reposto com a sanha de um tipo de iluminismo fora de hora que permite a revelação do irrevelável.

A quem se choca, a cena pornográfica apresenta o sexo em suas formas mais diversas como algo natural, mas que seria arcano à visão nublada pela moral. Vindo por todos os vãos, com todos os meios e extensões. O corpo assim exposto é passível à idéia transgressiva, material manipulável e disponível integralmente com tudo o que se tem ao jogo armado dos corpos jovens e violentos. Nada mais humano que o sexo sem limites. Esta instância apresentada que adere aos desejos inconfessados e assume a carapuça de um impulso natural.

No entanto, algo acontece quando se apresenta o resultado da transgressão erótica do corpo. Primeiro, o ritual burguês e romântico da cena amorosa que enlaçaria os casais é desfeito, depois, é realizada a dissolução da igualdade na comunhão amorosa fincada no contrato pela transgressão mútua e, enfim, aparece a repetição de um repertório facilmente reconhecido, dividido em categorias cada vez mais reduzidas e definidas.

Partes de corpos interagindo em tipos definidos de ação premeditados, prêt-à-porter partilhados em massa que seguem um roteiro pré-definido. Basta ler a embalagem ou o nome do arquivo a baixar na internet. Falemos desta representação específica que não se assume.

A pré-história do filme pornográfico

O corpo mudou muito desde o tempo em que aparecia imediatamente como objeto erótico. No primeiro momento em que se apresentou, seguiu junto com as mudanças da arte um impulso pela liberalização dos costumes. Houve, é claro, as primeiras imagens de representação do sexo, mas é quando surge como imagem em movimento, ou propriamente como filme, depois do cinematógrafo, que estas imagens passam progressivamente a ter como referência o que havia de engraçado no choque propiciado pelos pioneiros da representação em massa do sexo.

As curtas representações iniciais como Les Époux Vont au Lit, de Eugène Pirou, não deixavam adivinhar o que viria, pois, assim como as produções pouco posteriores como o conterrâneo O Bom Albergue, de 1908, todos receavam a exposição direta e integral do corpo nu até ser imaginado um espaço próprio e seguro que foi o bordel, cenário dominante nos filmes posteriores assistidos sem vergonha e às escondidas, pois mesmo que seja constrangedor encontrar alguém no cinema, isto seria natural de acontecer no espaço do lazer de exceção do Vaudeville. Tudo mudará nos anos sessenta com o documentário sueco Jag är Nyfiken, cujo título no Brasil é revelador do quanto chocava seus espectadores curiosos: Eles nos chamam desajustados (- por que desajustados?). É interessante notar que para ter início a exposição da cena completa do sexo e não mais sua representação indireta, adota-se o naturalismo (e, de certa forma, o voyeurismo) na forma de um documentário sobre o comportamento. Como se restasse ao corpo, reservado de sua exposição enquanto elemento social, ser retratado como natureza, como algo capturado de modo desprevenido. Muito da forma da pornografia posterior terá algo do distanciamento com que a jovem Lena Nyman beija o pênis flácido de seu namorado neste filme.

A virada dos anos 70

Apesar da produção pornográfica nos anos setenta ter interiorizado a forma das demais produções cinematográficas ditas sérias, como a duração, o distanciamento na filmagem, a representação e o enredo, ela se tornou um tipo de paródia que visou chocar os valores, enxergando-se como um tipo de transgressão, participando das demais transformações dos hábitos.

Sua difusão comercial se inicia neste período nos EUA quando se adotam medidas que garantem maior liberdade à produção e às classificações que estratificavam as faixas etárias dos filmes, abrindo o caminho para sua recepção no cinema, caminho diferente e posterior ao da revista pornográfica, até então somente liberada nos países escandinavos tidos como liberais e líderes no mercado pornográfico de então.

Constatam-se nestes primeiros sucessos pornôs dois limitadores às suas formas, que talvez fossem ligados à recepção. De um lado, o cinema impedia algo curto e direto a quem se deslocava para vê-lo na sala de projeção; por outro lado, a câmera impedia o enquadramento tão próximo ao atual. No entanto, podem-se observar alguns detalhes.

Por exemplo, de dois casos paradigmáticos como Deep Throat (Garganta Profunda) e The Devil in Miss Daisy (O Diabo na Senhorita Daisy), fiquemos com o primeiro. Deep Throat é um autêntico livre empreendedor numa nova área de sucesso, nada mais americano. De custo baixíssimo, filmado em 1972, é simplesmente o filme pornográfico de maior sucesso de todos os tempos. A batalha dos seus produtores e diretores contra Nixon, que tentou proibi-lo, foi tomada como uma luta entre a América liberal e a conservadora, sendo até mesmo lembrada quando posteriormente deram o nome do informante do caso Watergate de Garganta Profunda.

Seu enredo é o de um filme de humor que ri de si mesmo, colocando o pornô, mesmo constrangido, no vasto catálogo do fun. Linda Lovelace, no papel de Linda, é uma mulher que experimentou de tudo sem conseguir ter um orgasmo, até que descobre graças a um orgasmólogo, o Dr. Young (Harry Reems), que somente “ouviria os sinos” (referência ao orgasmo) realizando felações profundas, pois teria nascido com uma deformação muito particular, o clitóris no fundo da garganta.

É interessante a cena que prenuncia o futuro da representação do sexo no cinema, quando conversa com sua amiga Helen (Dolly Sharp) e esta lhe recomenda a consulta com o Dr. Young, enquanto um jovem que mal se vê, sem nome e que não aparece nos créditos, realiza nela uma cuidadosa cunilíngua, mostrando com que facilidade se pode gozar.

Comparar esta produção com o que adveio posteriormente ainda gera desconforto em quem participou desta mobilização de inspiração reichiana em nome da verdade do sexo e contra a repressão dos costumes eróticos, como representado no desencontro entre este tempo e a atualidade no filme Le pornographe de Bertrand Bonello. Além disso, o sucesso desta produção faz destacar sua efemeridade, pois nunca mais se repetiu com outro filme pornográfico. De qualquer modo, é possível pensar hoje num espectador de filmes eróticos que preste atenção no seu enredo até o ponto em que pudesse notar seus gracejos?

Para isto será necessário o nascimento de dois gêneros distintos, o filme erótico e, no Brasil, a pornô-chanchada, ambos envoltos em enredos suporte cuja revelação do corpo e a insinuação da cena erótica já bastavam para a criação do enlace erótico na fantasia do espectador. Por sua vez, a pornografia se torna cada vez mais distante de tais enredos ao assumir uma proposta mais radical de penetrar constantemente o enredo cada vez menos secreto dos corpos.

O filme pornô dos 80 até hoje

É visível que sua história tomou outro rumo, uma história que mostra como o meio com que se faz o filme e se assiste muda o modo de se fazer filmes, determinando seu conteúdo. Afinal, duas outras mudanças que repercutiram nos filmes são técnicas.

A primeira é menos óbvia a quem assiste. A mudança da câmera que permitiu o recorte do corpo em close, pois a diminuição da câmera permite a aproximação até à derradeira entrada no próprio corpo, com o qual passa a interagir.

A câmera, ao mesmo tempo em que passa a pôr-se em cena sem gerar um efeito de distanciamento (como causou ao surgir na nouvelle vague ou no documentário), passa a afirmar mais um efeito de transgressão em cena, pois aparece em conflito contra qualquer coisa que pudéssemos tomar como “clima” ou enlace erótico, mesmo que ficcional, dos atores na cena.

Ao mesmo tempo em que a câmera aparece, desaparecem progressivamente os atores homens, restando apenas seus genitais, o que só não acontece com a atriz, e isto porque a face dela é importante para outro ato de transgressão recorrente, a ejaculação em sua face, como se no enredo do filme se efetuasse um ataque ou uma vingança da força contra a beleza.

A segunda modificação formal e técnica foi a possibilidade de se ver o filme em casa graças ao vídeo cassete, o que tornava a recepção privada. Os anos oitenta criaram suas divas, as principais sereias deste canto privado dos filmes, com destaque à atriz húngara, depois naturalizada italiana, e deputada de seios à mostra eleita pelo Partido Radical Cicciolina (nome fictício, artístico e político de Ilona Staler).

Com a mudança da recepção pública para a privada puderam ter início as exposições mais radicais do corpo e dos desejos humanos mais secretos. A citada estrela Cicciolina inicia a divulgação de cenas mais radicais intermediadas por imagens de “bestialidade” com cavalos, cenas com fezes e outros eventos tolerados graças ao seu semblante doce, tornando os meandros das taras privadas mais palatáveis.

Seria demais dizer que ela abriu a Caixa de Pandora, pois, contra o filme pornográfico “com história”, estabeleceu-se a definição do filme pela tara específica que já descreve o ato, o que se viu em produções, na época, menores. Os filmes de Cicciolina tinham nomes pomposos ou eufemísticos como A ascensão da imperatriz romana e Banana com chocolate, nunca algo literal como Anal com Fezes I, ou similares que conquistariam sua reputação nos anos 90.


No entanto, notemos, ela teve nome, um corpo inteiro e uma personalidade ainda que fictícia, não sendo apenas um fragmento de seu corpo, pois, apesar de expor muito seus seios, eles aparecem com o resto. A redução metonímica do corpo do desejo em fragmentos assumiu a característica que vinculava o espectador ao seu produto audiovisual de conteúdo sexual. Em determinado momento passou a emergir nas categorias dos filmes o catálogo de excentricidades, patologias e taras assumidas como naturais no espaço da cama, onde tudo era aceitável, apesar de velado por culpa da moralidade (ao menos era o que se acreditava, seguindo o repertório reichiano).

As seções veladas das vídeo locadoras, que se enchiam de sócios envergonhados, deram lugar à internet quando ocorreu uma explosão do desejo de participar do espetáculo, de se tornar objeto de desejo, de chocar e ressignificar os hábitos sexuais em novas categorias, enquanto gostos separados. No entanto, pareceu ser necessário manter o normal e a culpa, ainda que só para transgredi-la. Ou que outro motivo haveria para a manutenção dos filmes com história, enredo e o cada vez mais supérfluo esquema inicial de sedução e enlace dos casais, que se tornaria ele mesmo uma tara, muitas vezes jogada para a categoria de “filmes pornográficos orientados para mulheres”?

Progressivamente, a efusão de filmes de pequena duração, amostragens gratuitas com recorte e focalização exclusiva em partes separadas do corpo foram justificadas pela manutenção do anonimato, que se somaria à efusão de experimentos visando chocar pela exposição da imagem do sexo, mesmo que o impacto da imagem do corpo erotizado fosse progressivamente anestesiado pela sua naturalização em comerciais, filmes, novelas, histórias em quadrinhos, etc. Tudo isto levou, por um lado, à radicalização do impacto como objetivo da exposição da imagem, como se a cena amorosa houvesse efetivamente se descolado do sexo, sublimado num tipo de esporte que envolve relações de força para além da cena, visando outro tipo de relação que criasse efeitos no espectador. O sexo retratado visaria criar uma máquina para um efeito nem sempre erótico, bastando, para isso, acompanhar um dos maiores sucessos do You Tube.

O filme brasileiro Two Girls and one Cup, cuja ação envolve duas garotas entre fezes e regurgitação, virou sensação quando alguém teve a idéia de exibi-lo a outra pessoa e retratar suas reações. Referências a este “jogo” apareceram em seriados de TV americanos e animações seriadas para adultos. Este parece ser o resumo do jogo criado entre a retratação, a reprodução e a exibição de filmes pornográficos atuais, resultando num distanciamento inclusive do sexo. O foco agora é dado diretamente ao impacto causado no espectador, sendo a cena erótica um fundo de onde se desloca a outra ação, a de se obrigar a ver este mesmo filme.

Quando percebemos que a indústria do sexo e a própria representação espetacular do sexo podem funcionar mesmo sem sexo, dizendo mais respeito a uma atitude sobre ele, podemos concluir com certeza que sua exploração, exposição e a reprodução de suas formas vai muito além da função iluminista que tentavam os Manuais de Educação Sexual ou Enciclopédias sobre o tema, mesmo que a pornografia muitas vezes se justificasse como uma extensão radical das pesquisas do Dr. Kinsey, que permitiram a muitas senhoras americanas tratar do tema com normalidade.

No entanto, qualquer um dos seus espectadores e produtores passará a evocar esta defesa no interesse de preservar uma pretensa inocência do produto, para garantir um resquício de experiência para o espectador, colocando a pornografia como uma diversão entre muitas, que deve preservar a relação do espectador com o filme próxima à da contemplação natural ou encantada, algo da ambigüidade do sagrado/maldito que Mauss descrevia a respeito do sacrificado, mesmo que saibamos do mercado que representa e do que implica.

Mas se a pornografia vai para além do sexo, o que sobraria do conteúdo humano da pornografia, o corpo?

As infinitas manipulações do corpo
É facilmente percebida a diferença entre a pornografia de períodos anteriores e a atual, no que toca ao corpo, e isto porque há uma ligação entre a experiência do sexo fora da pornografia e a que se dá nela. O corpo não é mais imediatamente erótico e teve de se modificar para poder tornar aceitável sua representação, colocando-se como algo de elaborado.

Por que o corpo nu na pornografia expulsou os pêlos do corpo das atrizes e atores, tornando a superfície de sua pele similar ao plástico, com brilho e liso, manipulável e elástico, a ponto de ser forçado às peripécias mais radicais entre volumes os mais incomuns? Será isto reflexo da própria sociedade que talhou igualmente o corpo da modelo de biquínis e lingerie, ou terá aí a participação da indústria do sexo?

Basta notar a rápida mudança que se experimenta ao longo das décadas, chegando ao que vemos hoje. Alguém poderia argumentar que esta seria a marca de um desenvolvimento da civilização e da sociedade que, ao apreender a superfície do corpo como espaço de simbolização, revelaria a interiorização de uma categoria socialmente partilhada. Tal forma de se mostrar, aparentemente gostaria de se libertar das marcas da natureza, como o nosso parentesco com os animais atestado pelos nossos pêlos.

Deste modo, a superfície lisa nos colocaria na categoria de símiles levados para outro plano de elaboração do corpo, o que atestaria marcas culturais em mudança. Nada mais natural, ou melhor, cultural, como o mostram as tatuagens que se tornaram corriqueiras e pouco chocam hoje as madames da high society. O que há demais em se tornar liso?

No entanto, colocamos que não tratamos propriamente do corpo em si, mas do corpo apreendido pela indústria do sexo, e, além disso, dentro deste contexto teríamos dois desdobramentos possíveis:

Um seria o de que a pornografia apreende características determinadas por mudanças sociais, sendo apenas recortada e divulgada em escala industrial.

O outro desdobramento, o que prenderia o corpo dentro de um nível de erotismo socialmente determinado em categorias, o que pode tornar a presença de pêlos na atriz e no ator pornô uma dentre as suas possibilidades eróticas, que se estratificam sem se negar. Esta posição implica que se pode estratificar infinitamente as categorias do erótico, havendo até mesmo uma categoria específica para o que antes foi comum no corpo (e talvez ainda o seja), sendo deslocado para uma “tara”, como o “hair”, a presença de pêlos que sai de sua existência natural para ser aproximada ao exótico, ao estranho.

O desejo desencarnado

Como elemento de problematização, fiquemos com a segunda intuição, a de que haveria alguma relação entre esta mudança da exposição do corpo com base na produção pornô.

O distanciamento dos atores na cena apresenta os atores pornôs como se fossem independentes não apenas um do outro, mas do próprio ato sexual em si. Veja-se o semblante, como se fossem poses de modelos, mantendo outro tipo de apresentação do corpo deslocado da cena sexual em ação, não importa a intensidade e os orifícios envolvidos. Seria uma afirmação da potência do Eu, que resistiria a toda aquela articulação maquínica que envolve os atores, a cena, o diretor, as luzes, que olha para a câmera como se não estivesse ali, mesmo que ela se denuncie como presente na cena ?

Neste caminho há dois planos de deslocamento em relação ao sexo. O primeiro, o do distanciamento do corpo suplantando a forma orgânica e mesmo animal que ele é. O segundo, o distanciamento da interação, mostrando-se o ator ou a atriz como superiores à situação em que se inserem, como numa luta, um contra o outro, ou contra a cena, o espectador e todo o entorno, mas sem que esta captação apresentasse uma marca que pudéssemos aparentar com o distanciamento da forma cinematográfica, como o efeito de opacidade que Bazin buscava ao criticar na montagem o falso efeito de naturalismo, o que acreditamos não poder ser posto pela cena pornográfica, pois as diferenças do pornô são alegóricas e irônicas como a própria representação.

Com efeito, falsos flagras e cenas feitas com câmeras amadoras estimulam o desejo voyeur, o desejo de surpresa como aparece em diversas produções para a internet, ligados à acessibilidade da reprodução de imagens que as novas câmeras portáteis permitem aos casais. Estes se apresentam gratuitamente enquanto bens simbólicos para que a indústria do espetáculo lucre com o salto mortal de seu ato sexual em mercadorias, assim como a própria simulação destas cenas “reais” capturadas pela indústria.

O ato sexual se torna esporte de corpos inorgânicos, apresentados enquanto saltos libertadores das prisões e limitações de desejos representados não somente pelo tabu sexual, mas também do próprio corpo – mesmo que tal desejo em busca de libertação seja pré-definido dentro de uma categoria de ação previamente descritiva (anal, oral, bukake, public, etc.).

A internet aparece como um espaço de circulação de imagens que permite a indexação de quaisquer categorias, ainda que progressivamente elas se afinem, posto serem dadas ao imaginário e convidadas a se libertar na realidade (ou no virtual), tornando-se novas imagens postas em circulação na internet. Uma máquina de catalogação e ordenação da pluralidade dos atos eróticos.

Se saber de tudo isto não basta para distanciar de vez a força da presença ou a sugestão das imagens da pornografia na vida sexual fora da tela, cabe perguntar porquê ela subsiste? Ou ainda, conforme as questões levantadas por J.G. Ballard no ensaio introdutório ao romance Crash:

A moderna tecnologia nos proporcionará meios até hoje não sonhados de dar vazão a nossas próprias psicopatias? Esse direcionamento da nossa perversidade inata vai, presumivelmente, nos beneficiar? Existe algum desdobramento lógico desviante mais poderoso do que aquele fornecido pela razão?

Estas coisas só se responderiam com uma pesquisa que soubesse como os corpos entram na pornografia, como se situam lá e, mais ainda, o que ela significa para a recepção. Ou melhor, por que, mesmo ironicamente, a imagem dura e plástica da pornografia mantém sua circulação para além da indústria, com casais que mandam imagens de si mesmos e que, sem lucrar nada com isso, se entregam a tal impulso de “libertação”, criando complicações sociais para si mesmos ao pôr em circulação suas imagens oferecidas livremente para outras pessoas, mas que são reproduzidas numa indústria que lucra justamente com este impulso?

Aparentemente, para o caso do receptor a situação é um moto-perpétuo. A relação com a imagem pornográfica parece ser a da busca de uma imagem que sacie por si mesma o impulso por sexualidade representado por uma imagem cada vez mais violenta. Aparentemente, seguiria o sentido libertador da ruptura de um tabu, visto pelo receptor não como valor, mas como determinação externa que limita suas experiências. Rompido este tabu, vem a saciedade momentânea do impacto que causa nos próprios valores partilhados, vistos como externos, permitindo ao consumidor seguir em busca de imagens ainda mais radicais. No resultado geral, isto acaba em ansiedade por mais imagens, tédio com o processo e angústia com a repetição. Na produção, resulta em condições cada vez mais difíceis a pessoas que são trabalhadores sujeitados à produção da pornografia inserida numa competição feroz de um mundo espetacular, apesar de cada vez mais longe do glamour de imagens que ninguém mais vê do mesmo modo, pois a internet disponibiliza criações pornográficas o tempo todo. Imagens da carne cujos limites são abstraídos para a manutenção do sexo como evento mecânico/inorgânico que violenta.

E, por fim, caberia ainda perguntar se a produção pornográfica teria em seu processo de expulsão e submissão do corpo em prol de algo criado exclusivamente pela indústria do pornô algum parentesco com a expulsão do conteúdo humano da circulação de mercadorias em geral. Ou seja, se o corpo estaria sendo não apenas suprimido neste momento em que ainda subsiste, mas subsumido na produção de mercadorias imagéticas, de corpos eróticos inseridos na lógica do capital, que daria uma resposta própria à definição tanto do que sejam corpos, quanto do que seja erótico. Resposta que, apesar de circular cada vez mais nas cabeças dos casais, tornou-se impossível de ser reproduzida nas camas onde, a princípio, teria início e que é, além disso, detentora de uma lógica própria, que teria origem e finalidade para fora do sexo.

Concluindo, paradoxalmente, o pornô apontaria para algo fora do sexo que ainda não sabemos o que é, ou se estaríamos tratando ainda de indícios de uma outra forma de sexualidade que ainda começa a se manifestar, uma sexualidade pós-humana.

Bibliografia

ABREU, Nuno César. O olhar pornô. Mercado de Letras, São Paulo, 1996.
BALLARD, J.G. Crash. São Paulo, Companhia das Letras, 2007.
KINSEY, Alfred. Sexual Behavior of human Female. Los Angeles, Pocket, 1965.
KINSEY, Alfred. Sexual Behavior of human Male. Indiana, Indiana University Press, 1998.
LEITE JR, Jorge. Das Maravilhas e prodígios sexuais – A pornografia “bizarra” como entretenimento. São Paulo, FAPESP/Annablume, 2006.
MAUSS, Marcel e HUBERT, Henri. Sobre o Sacrifício. Cosac Naify, São Paulo, 2005.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo, Cosac Naify, 2003.
REICH, Wilhelm. A função do Orgasmo. São Paulo, Editora Brasiliense, 1973.
SAFATLE, Vladimir. A profanação como crítica da ideologia - Novo livro de Giorgio Agamben procura ser um tratado teológico-político às avessas. Disponível aqui. (Acessado em: 7 ag. 2008.)





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